Filho conquista direito de retirar sobrenome paterno após abandono afetivo

O Juiz considerou a situação de dor, angústia e sofrimento suportado pelo Autor em ostentar o sobrenome do genitor ausente em sua vida

Segue a transcrição da sentença  do processo n º 1003024-46.2019.8.26.0004, do juiz de Direito Julio Cesar Silva de Mendonça Franco,

da 1ª vara Cível de SP:

 

V I S T O S, etc.

I. …, moveu a presente Ação de Retificação de Registro Civil, alegando, em síntese, que pretende a retificação do seu assento de nascimento incluindo o sobrenome materno … e excluindo o sobrenome paterno …, passando a se chamar …, ou subsidiariamente, …. Em síntese, o autor relata que na ocasião do seu nascimento ambos os genitores registraram o filho apenas com o sobrenome paterno. Ocorre que com 2 anos de idade os genitores se separaram e desde então o pai nunca procurou o requerente, nunca participou de sua infância, nem adolescência ou de qualquer momento de sua vida. Alega que o pai tem conhecimento de seu endereço, contudo nunca entrou em contato. Ao longo dos anos devido a falta de afinidade e contato com seu genitor o requerente passou a não mais usar o sobrenome paterno em suas relações sociais, passando a usar somente o sobrenome materno, ou seja, … Requer a retificação de seu assento de nascimento para modificar o seu nome para o de uso social, o qual já utiliza e é conhecido há anos.

O requerente apresentou documentos e as certidões de praxe às fls. 26/47. O Ministério Pública requereu a citação do genitor interessado para se manifestar sobre o pleito (fls. 52/54).

…, genitor do requerente, se manifestou às fls. 63/66, alegando, em síntese, que a genitora do requerente decidiu sair do Rio Grande do Sul e ir para São Paulo sem deixar qualquer vestígio do seu paradeiro como forma de impedir o pai do convívio com o filho e que nunca reivindicou qualquer pensão ou outro auxílio na criação do filho e que agora, vítima de alienação parental, o filho pretende afastar-se definitivamente do progenitor. Não concorda com a exclusão do seu sobrenome, porém, concorda com a inclusão do sobrenome da mãe.

Houve manifestação do Autor às fls. 78/84, com a juntada de documentos às fls. 85/106, os quais foram dados oportunidade para o genitor se manifestar (fls. 107). Porém, o mesmo permaneceu inerte (fls. 112).

Houve nova manifestação do Requerente às fls. 114/115 e manifestação do Ministério Público às fls. 121/122, insistindo na importância de uma maior comprovação sobre a ocorrência de abandono moral ou material por parte do genitor. Nova manifestação do Autor às fls. 126/128, com a juntada de novos documentos às fls. 129/194, os quais foram dados oportunidade ao genitor para manifestação (fls. 195), deixando o mesmo de se manifestar. Houve nova manifestação do Ministério Pública às fls. 202/203, requerendo a designação de audiência para o depoimento pessoal das partes e oitiva de testemunhas.

Foi designada audiência para a realização da prova oral para 17/09/2019. … se manifestou às fls. 246 informando a impossibilidade de comparecer à audiência designada alegando inexistência de recursos financeiros para a viagem e hospedagem. Pleiteia o seu depoimento pessoal através de plataforma de videoconferência, o que foi indeferido por despacho de fls. 247 uma vez que referido sistema não está disponível nesta Vara. Foi deferido, contudo, a expedição de Carta Precatória para o depoimento pessoal do genitor.

Na audiência designada, foram colhidos o depoimento pessoal do Autor e o depoimento das testemunhas arroladas pelo Autor: …, … e … (fls. 248/257). Outrossim, foi determinado que se aguardasse a devolução da Carta Precatória.

O Ministério Público requereu nova intimação do genitor para que esclareça, de forma clara e objetiva, se concorda ou não com o pleiteado por seu filho, apresentando as devidas razões por escrito e assim dispensando-se sua oitiva por carta precatória. … se manifestou às fls. 311/312, com a juntada de novos documentos às fls. 313/315, os quais foram dados oportunidade para o Autor se manifestar (fls. 316), manifestando-se o Autor às fls. 318/319. O Ministério Público se manifestou às fls. 325/327, tendo se posicionado de modo favorável ao pleito inaugural.

É o breve relatório.

 

D E C I D O.

II. A ação é procedente.

Pelo que se depreende da leitura da peça exordial e das demais manifestações constante dos autos, o interessado pretende a inclusão do patronímico materno, com a exclusão do sobrenome paterno e, subsidiariamente, a inclusão do sobrenome materno, alegando que após os dois anos de idade nunca mais teve nenhum tipo de convivência com seu genitor, deixando o mesmo de ter participado de qualquer momento de sua infância e adolescência. Referido abandono afetivo e material teria causado no autor dor, angústia, desgosto e sofrimento, passando o mesmo adotar o patronímico materno nas suas relações sociais.

Em que pese a manifestação contrária do genitor (fls. 63/66 e fls. 311/312), é que a robusta documentação juntada aos autos, bem como os depoimentos das testemunhas colhidos em audiência, deixam claro a ausência do genitor na vida do Autor, restando comprovada o total esmaecimento de laços sócio-afetivos entre ambos e as consequências dessa abstenção, com o desenvolvimento de um trauma psicológico.

Se referido distanciamento entre o genitor e o Acionante decorreram por culpa daquele ou não, pouco importa. O relevante, no caso, é que a situação de dor, angústia e sofrimento suportado pelo Autor (pela ausência de seu genitor em sua vida) resta agravado com a permanência do sobrenome paterno. O motivo relevante, portanto, consiste na insuportabilidade de ostentar um sobrenome que traz uma carga de sofrimento, devidamente comprovada nos autos.

O princípio da imutabilidade do nome não é absoluto e encontra exceções na lei e na jurisprudência, admitindo-se, excepcionalmente, desde que presentes a justa motivação e a prévia intervenção do Ministério Público, de modo a prevalecer, quanto ao nome civil, a real individualização da pessoa perante a família e a sociedade. Verifica-se, ademais, mediante os documentos de fls. 11/12 e 86, bem como através dos depoimentos das testemunhas, que o Autor, de fato, se apresenta e é conhecido no seu meio social apenas como …

Em corolário, é dado ao órgão judicial dimensionar a questão do ponto de vista da condição da pessoa humana, e não simplesmente visualizá-la através da “letra fria” da norma legal. É que o verdadeiro sentido da norma que trata do nome civil é a de, não só permitir a identificação da pessoa na sociedade, mas também (e principalmente), retratar a individualidade dessa pessoa, seus atributos morais, físicos e psíquicos. Outrossim, deve-se levar em consideração as razões íntimas e psicológicas do portador do nome, que pode levar uma vida atormentada, tal como se verifica no caso em análise.

Ademais, a supressão do sobrenome paterno em nada altera a sua condição de paternidade, que continua íntegra e suficiente. Nesse sentido vejam-se, a propósito, a seguinte ementa :

“CIVIL. REGISTRO PÚBLICO. NOME CIVIL. PRENOME. RETIFICAÇÃO. POSSIBILIDADE. MOTIVAÇÃO SUFICIENTE. PERMISSÃO LEGAL. LEI 6.015/1973, ART. 57. HERMENÊUTICA. EVOLUÇÃO DA DOUTRINA E DA JURISPRUDÊNCIA. RECURSO PROVIDO. I – O NOME PODE SER MODIFICADO DESDE QUE MOTIVADAMENTE JUSTIFICADO. NO CASO, ALEM DO ABANDONO PELO PAI, O AUTOR SEMPRE FOI CONHECIDO POR OUTRO PATRONÍMICO. II – A JURISPRUDÊNCIA, COMO REGISTROU BENEDITO SILVÉRIO RIBEIRO, AO BUSCAR A CORRETA INTELIGÊNCIA DA LEI, AFINADA COM A “LOGICA DO RAZOÁVEL”, TEM SIDO SENSÍVEL AO ENTENDIMENTO DE QUE O QUE SE PRETENDE COM O NOME CIVIL É A REAL INDIVIDUALIZAÇÃO DA PESSOA PERANTE A FAMÍLIA E A SOCIEDADE.”(Recurso Especial n.º 66.643/SP, da relatoria do eminente Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, Quarta Turma, DJ 21/10/1997)

Assim sendo, não se vê óbice nenhum para que seja realizada a retificação pretendida. Por conseguinte, tudo está a aconselhar a correção desejada, sobretudo para se evitar angústia e sofrimento para a autor.

 

III. Isto posto, JULGO PROCEDENTE a presente Ação de Retificação de Registro Civil movimentada por …, para o fim de autorizar a retificação da certidão de nascimento descrita na Exordial, junto ao Cartório Central de Estancia Velha/Rio Grande do Sul, com o objetivo de ficar constando na mesma o nome correto da autor: …

Oportunamente, expeça-se o mandado de averbação para os devidos fins e arquivem-se os autos. Custas “ex vi legis”, descabendo a fixação de verba honorária.

P. R. I. São Paulo, 10 de janeiro de 2020.

 

(Fonte: Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo)

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