O distanciamento social e o nascimento de novos pais

Em tempos de pandemia, vale lembrar de uma outra grave epidemia que contamina a sociedade, desde sempre, que denominamos “Abandono Afetivo”. É um “vírus’ que atinge milhares de crianças e adolescentes abandonados pelos seus próprios pais, ou seja, exatamente as pessoas de quem mais esperavam atenção durante toda a trajetória de suas vidas.

O dever legal de cuidar da prole está previsto em boa parte do ordenamento jurídico, tal como no artigo 7.1 da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança que assegura o direito da crianças conhecerem seus pais e serem cuidada por eles, bem como, os deveres do Poder Familiar estão destacados na nossa Constituição Federal em diversos artigos, mas em especial, no artigo 229 que determina que é dever dos pais, assistir, criar e educar os filhos menores.

E como se não bastasse a convenção adotada pelo Brasil e a clareza nossa Carta Maior, temos esse dever de criação expresso no artigo 1634 do Código Civil, bem como, no artigo 22 e outros do ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente, que determina que aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos menores.

E o que deveria ser uma obrigação natural, comum até no mundo animal, precisa ser regulada pelo direito, inclusive com diversas condenações recentes de pais que deliberadamente, e sem qualquer motivo, abandonaram os seus filhos pela vida.  Dias inteiros sozinhos sem a presença dos pais para conversar e apresentações escolares sempre procurando alguém na platéia. Festas de Natal, aniversário, e Réveillon sem sequer um “oi”, ou um mínimo “sinal de vida”.

Vale ressaltar, que desse abandono, além do dissabor natural, tal falta pode resultar em cicatrizes e sequelas emocionais que podem perseguir esses filhos para o resto da vida se não tratadas adequadamente.

A criança e o adolescente abandonados podem inclusive apresentar diversas formas de deficiência no comportamento social e mental para o resto da vida.  É uma sensação de vazio, de desamor, de nada. A dor de quem esperava por um sentimento, ainda eu mínimo, de amor ou atenção, pode gerar distúrbios de comportamento, de relacionamento social, problemas escolares, depressão, tristeza, baixa autoestima e inclusive problemas de saúde.

Mas além das sequelas destacadas, que podem ser comprovadas por centenas de trabalhos de conceituados pesquisadores de todo o planeta, a paternidade irresponsável (que pode ser também a maternidade) tem gerado um custo social e econômico avassalador na nossa sociedade e destruído milhares de famílias. Diversas pesquisas demonstram efetivamente que essa omissão está influindo inclusive no aumento do número de menores infratores internados em decorrência da prática de atos infracionais.

Em nosso último livro “Mãe, cadê meu pai?” (2019) tentei definir em um trecho, um pouco da tristeza do abandono como: “um vazio existencial similar à morte. O mesmo que jogar crianças e adolescentes dentro de uma sepultura ainda com vida, e nela, de forma deliberada e cruel, jogar uma pá de terra todos os dias que representa cada lembrança não correspondida. O abandono é a morte em vida”.

Mas todo esse abandono que descrevemos acima, praticado por muitos pais de forma deliberada e cruel, e que tem feito milhões de vítimas pelo planeta, pode também, em vários casos, estar ocorrendo dentro dos próprios lares.

E neste trágico momento que estamos vivendo, todas as medidas sanitárias restritivas de isolamento social estão mudando a vida de diversas famílias e consequentemente fazendo com que muitos pais, surpreendentemente, estejam reencontrando seus filhos perdidos durante anos, dentro de suas próprias casas.

É comum que muitos pais cheguem em casa, e de longe acenem para os filhos (quando esses não estão trancados no quarto), liguem a TV, trabalhem no computador, paguem boletos, jantem sozinhos, acessem todas as redes sociais, e se tranquem no quarto.

E dessa forma, estamos criando toda uma geração de filhos estimulada somente com objetos materiais, sem limites, com pais emocionalmente indisponíveis e filhos entregues a um arsenal de armas tecnológicas. As consequências dessa omissão são as piores possíveis e podem variar desde problemas de saúde, traumas emocionais, inadequação social, falta de um objetivo de vida, casos de depressão, e outros.

E no meio de tanta tragédia, esperamos que muitos pais possam aproveitar   a quarentena para melhorarem efetivamente a interação com essas crianças e adolescentes, e participarem de suas vidas.

E assim, será possível que nesse período de isolamento social aconteça o nascimento novos pais.

Envolvam seus filhos nas suas vidas e caminhem de mãos dadas com eles. Ter os pais como exemplo é a regra, e quando esses filhos ainda sentem que são importantes para os pais a autoestima melhora. De um modo geral, filhos que possuem boas memórias da infância com seus pais são mais propensos a lidarem com as tensões do dia a dia na vida adulta.

Os pais devem ser para os filhos exemplos de caráter e de como andar com integridade, servindo sempre de referência maior para eles. Portanto, cuidem dos seus filhos. Aproveitem esse tempo livre dentro de casa para reavaliarem essa situação e descobrirem uma nova vida ao lado deles.

Podemos transformar este momento trágico que estamos vivendo em uma incrível oportunidade de aproximação com todos esses filhos esquecidos dentro de casa. Em uma conversa de cinco minutos é possível sabermos um pouco sobre nossos filhos, seus medos, tristezas, frustrações, desejos e sonhos. É uma boa hora para conquistarmos definitivamente a confiança dos nossos filhos para o resto da vida. Sejam pais todos os dias, brinquem, abracem, ensinem, conversem e aprendam a dar carinho e afeto para que não tenham que conviver com o remorso amanhã.

A desculpa de que “não tenho tempo” não cola mais. Estamos com tempo de sobra, e todos podemos fazer essa importante reaproximação, com conversas, brincadeiras, filmes (não se esqueçam da pipoca), livros, jogos de tabuleiro e jantares em família. É óbvio que a imaginação do que fazer será de cada família, pois o que realmente importa é não perder esta valiosa oportunidade de convivência extrema.

E não tenham dúvida alguma de que um dia seus filhos irão lembrar disso tudo, estará gravado em suas memórias, pois essa tragédia que estamos vivendo está causando forte impacto emocional em todos, ou por acaso vocês não se recordam aonde estavam no momento em que os aviões atingiram as torres gêmeas no atentado de 11 de setembro de 2001?

Assim, cabe a cada um de nós decidirmos que agora seremos os capitães do barco das nossas vidas, para que possamos navegar juntos com nossos filhos, neste tempo de águas turbulentas, rumo a um porto seguro.

Não adiem mais essa decisão de participar ativamente da vida dos seus filhos, pois esse será o legado que irão deixar, e não tenham dúvida de que será dessa forma que as pessoas irão se lembrar de vocês um dia.

Acordem pais.

O que vocês estão esperando para dar o primeiro passo nessa direção ainda hoje?

 

 

Char­les Bic­ca é advogado e Presidente da Comissão de Defesa dos Direitos da Criança, Adolescente e Juventude da OAB/DF. Membro da Comissão Nacional de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente do Conselho Federal da OAB e Presidente da Comissão de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente da Rede Internacional de Excelência Jurídica no DF – RIEX/DF. 

É autor dos livros “Abandono Afetivo – O dever de cuidado e a responsabilidade civil por abandono de filhos” (2015), coautor do livro “Pedofilia – Repressão aos crimes de violência sexual contra crianças e adolescentes” (2017), e “Mãe, cadê meu pai?” (2019)

É criador da maior comunidade do Brasil contra o abandono de filhos na internet (www.abandonoafetivo.org).

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