CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. FAMÍLIA. ABANDONO AFETIVO. COMPENSAÇÃO POR DANO MORAL. POSSIBILIDADE. DANO IN RE IPSA.
1. “A omissão é o pecado que com mais facilidade se comete, e com mais dificuldade se conhece, e o que facilmente se comete e dificultosamente se conhece, raramente se emenda. A omissão é um pecado que se faz não fazendo.” (Padre Antônio Vieira. Sermão da Primeira Dominga do Advento.Lisboa, Capela Real, 1650).
2. A omissão não significa a mera conduta negativa, a inatividade, a inércia, o simples não-fazer, mas, sim, o não fazer o que a lei determina.
3. “Inexistem restrições legais à aplicação das regras concernentes à responsabilidade civil e o consequente dever de indenizar/compensar no Direito de Família.” (Precedente do STJ: REsp. 1159242/SP, Relatora Ministra Nancy Andrighi).
4. “A indenização do dano moral por abandono afetivo não é o preço do amor, não se trata de novação, mas de uma transformação em que a condenação para pagar quantia certa em dinheiro confirma a obrigação natural (moral) e a transforma em obrigação civil, mitigando a falta do que poderia ter sido melhor: faute de pouvoir faire mieux, fundamento da doutrina francesa sobre o dano moral. Não tendo tido o filho o melhor, que o dinheiro lhe sirva, como puder, para alguma melhoria.” (Kelle Lobato Moreira. Indenização moral por abandono afetivo dos pais para com os filhos: estudo de Direito Comparado. Dissertação de Mestrado. Consórcio Erasmus Mundus: Universidade Católica Portuguesa/Université de Rouen, França/Leibniz Universität Hannover. Orientadora: Profa. Dra. Maria da Graça Trigo. Co-orientador: Prof. Dr. Vasco Pereira da Silva. Lisboa, 2010).
5. “Dinheiro, advirta-se, seria ensejado à vítima, em casos que tais, não como simples mercê, mas, e sobretudo, como algo que correspondesse a uma satisfação com vistas ao que foi lesado moralmente. Em verdade, os valores econômicos que se ensejassem à vítima, em tais situações, teriam, antes, um caráter satisfatório que, mesmo, ressarcitório.” (Wilson Melo da Silva. O dano moral e sua reparação,Rio de Janeiro: Forense, 1955, p. 122).
6. Não se pode exigir, judicialmente, desde os primeiros sinais do abandono, o cumprimento da “obrigação natural” do amor. Por tratar-se de uma obrigação natural, um Juiz não pode obrigar um pai a amar uma filha. Mas não é só de amor que se trata quando o tema é a dignidade humana dos filhos e a paternidade responsável. Há, entre o abandono e o amor, o dever de cuidado. Amar é uma possibilidade; cuidar é uma obrigação civil.
7. “A obrigação diz-se natural, quando se funda num mero dever de ordem moral ou social, cujo cumprimento não é judicialmente exigível, mas corresponde a um dever de justiça.” (Código Civil português – Decreto-Lei nº 47.344, de 25 de novembro de 1966, em vigor desde o dia 1 de junho de 1967, artigo 402º).
8. A obrigação dos progenitores cuidarem (lato senso) dos filhos é dever de mera conduta, independente de prova ou do resultado causal da ação ou da omissão.
9. “O cuidado como valor jurídico objetivo está incorporado no ordenamento jurídico brasileiro não com essa expressão, mas com locuções e termos que manifestam suas diversas desinências, como se observa do art. 227 da CF/88.”(Precedente do STJ: REsp. 1159242/SP, Relatora Ministra Nancy Andrighi).
10. Até 28 de março de 2019, data da conclusão deste julgamento, foram 21 anos, 2 meses e 20 dias de abandono, que correspondem a 1.107 semanas, com o mesmo número de sábados e domingos, e a 21 aniversários sem a companhia do pai.
11. A mesma lógica jurídica dos pais mortos pela morte deve ser adotada para os órfãos de pais vivos, abandonados, voluntariamente, por eles, os pais. Esses filhos não têm pai para ser visto. No simbolismo psicanalítico, há um ambicídio. Esse pai suicida-se moralmente como via para sepultar as obrigações da paternidade, ferindo de morte o filho e a determinação constitucional da paternidade responsável.
12. “O dano moral, com efeito, tem seu pressuposto maior na angústia, no sofrimento, na dor, assim como os demais fatores de ordem física ou psíquica que se concretizam em algo que traduza, de maneira efetiva, um sentimento de desilusão ou de desesperança.” (Wilson Melo da Silva. Idem,p. 116).
13.O dano moral (patema d’animo) por abandono afetivo é in re ipsa
14. O valor indenizatório, no caso de abandono afetivo, não pode ter por referência percentual adotado para fixação de pensão alimentícia, nem valor do salário mínimo ou índices econômicos. A indenização por dano moral não tem um parâmetro econômico absoluto, uma tabela ou um baremo, mas representa uma estimativa feita pelo Juiz sobre o que seria razoável, levando-se em conta, inclusive, a condição econômica das partes, sem enriquecer, ilicitamente, o credor, e sem arruinar o devedor.
15. “É certo que não se pode estabelecer uma equação matemática entre a extensão desse dano [moral] e uma soma em dinheiro. A fixação de indenização por dano [moral] decorre do prudente critério do Juiz, que, ao apreciar caso a caso e as circunstâncias de cada um, fixa o dano nesta ou naquela medida.” (Maggiorino Capello. Diffamazione e Ingiuria. Studio Teorico-Pratico di Diritto e Procedura.2 ed., Torino: Fratelli Bocca Editori, 1910, p. 159).
16. A indenização fixada na sentença não é absurda, nem desarrazoada, nem desproporcional. Tampouco é indevida, ilícita ou injusta. R$ 50.000,00 equivalem, no caso, a R$ 3,23 por dia e a R$ 3,23 por noite. Foram cerca de 7.749 dias e noites. Sim, quando o abandono é afetivo, a solidão dos dias não compreende a nostalgia das noites. Mesmo que nelas se possa sonhar, as noites podem ser piores do que os dias. Nelas, também há pesadelos.
17. Recurso conhecido e desprovido.
(Acórdão n.1162196, 20160610153899APC, Relator: NÍDIA CORRÊA LIMA, Relator Designado:DIAULAS COSTA RIBEIRO 8ª TURMA CÍVEL, Data de Julgamento: 28/03/2019, Publicado no DJE: 10/04/2019. Pág.: 533/535)