O que é um Pai?

A paternidade é um pergunta sem resposta. É uma temática construída sobre a incerteza, sobre a improbabilidade e que se encontra em conformidade com o velho adágio jurídico Pater incertus est mater certus.

No Direito Romano[2], a maternidade sempre certa “revelava-se por sinais exteriores, positivos, como a gravidez e o parto” (GRUNWALD, 2003) enquanto que a paternidade era consequência “da presunção legal de que a criança concebida na constância do casamento tinha como pai o marido da mãe” (idem), uma vez que pater est quem nuptiae demonstrant. O que permite dizer – embora não fosse essa a perspectiva no direito romano – que a paternidade e a filiação eram sempre decorrentes do encontro amoroso entre um homem e uma mulher. Voltarei a esse ponto mais adiante.

O campo do humano, território da linguagem, é marcado por um interdito humanizante, inaugurado por uma Lei Simbólica que antecede ao campo constituído pelas leis jurídicas, e que é garantidora do pacto social. Essa Lei, escrita com letra maiúscula, inaugura para o homem a falta, gerando-lhe um vazio fundador, em que o homem poderá tomá-lo como potência criativa para representar, e assim inventar, um sentido sobre sua existência.

Falar de paternidade implica constante construção em torno da pergunta: o que é um pai? Sendo assim é ético manter essa questão em aberto. Por isso vou trazer alguns elementos para pensarmos a respeito da paternidade e refletirmos sobre o exame de DNA como ferramenta legal de investigação de paternidade. Ele pode responder pela paternidade? O jurídico pode fazer operar a função paterna e, assim, garantir a uma criança o direito sagrado de saber sobre sua origem, sobre quem é seu pai?

É certo que a paternidade biológica sempre estará garantida pela genética. Mas o que dizer de sua vertente humanizadora, ética, que permite ao ser humano, por meio de laços afetivos, construir para si um lugar em uma linhagem familiar? Essa paternidade, construída na relação com o semelhante por meio de um ato de amor que, num só gesto, acolhe e interdita uma criança, é possível garanti-la através do DNA?

Vou partir do fragmento de uma carta do escritor irlandês James Joyce, endereçada ao seu pai, para encontrar um caminho a respeito desta pergunta: o que é um pai?: “A criança ainda não tem nome, apesar de completar dois meses na próxima quinta-feira. […] Eu penso que uma criança, à medida que vai ficando mais velha, deveria poder escolher o nome de seu pai ou de sua mãe. A paternidade é uma ficção legal” (MANDIL, 2003, p. 179).

Joyce é um autor renomado. Dono de um estilo literário inconfundível criou uma língua nova ao desconstruir em seus textos todo o sentido comunicacional das palavras. Carente de um pai em sua função de sustentar-lhe a Lei simbólica -escrita em letra maiúscula- que interdita o incesto e nos livra parcialmente da loucura, James Joyce até tinha um pai que o gerou: o senhor Stanislau Joyce. Um pai amável, mas que não conseguiu funcionar transmitindo a Lei que nomeia um filho e lhe confere identidade.

James Joyce tinha uma estrutura psicótica, o que poderia ter lhe deflagrado surtos; uma esquizofrenia. Isso não ocorreu porque o autor sustentou sua identidade através de sua obra. Para ele, o que operou como função paterna foi o fato de o escritor ter estudado, ao longo de sua vida, no colégio de jesuítas. A disciplina religiosa, a leitura, o conhecimento de várias línguas e o laço afetivo com alguns padres, além de introduzi-lo no campo literário, deram a Joyce o reparo necessário à sua precariedade de pai. Vale ressaltar que, mesmo tendo construído para si um pai e feito seu nome através de sua obra literária, Joyce não pode ser o passador dessa Lei para sua filha, que era esquizofrênica. Isso mostra que a falha na transmissão da lei pode atravessar gerações.

Esse relato sobre o escritor irlandês nos permite pensar o quanto é inútil tentar garantir a paternidade, reduzindo-a ao registro civil ou à relação biológica. Para que uma filiação aconteça, é necessário o reconhecimento simbólico de alguém, que não pode ser qualquer um. Isso implica investimento afetivo e desejo de transmitir uma filiação a esse novo ser que chega ao mundo. Sem isso, o que liga um pai a um filho pode não passar de “um instante de tesão cega” (MANDIL, 2003, p.193).

O homem é sempre filho do discurso. O que pode ser transmissível na relação parental é aquilo que permite a um ser encontrar para si algum lugar numa dada linhagem familiar, extraindo daí algum sentido para sua existência. Esse sentido nós sempre o retiramos dos enigmas da vida e daquilo que podemos articular em termos de palavras a respeito de nossa existência. Sendo assim, a função de um pai é a de arrancar um filho do amor martis – o interditando desse amor visceral, certo e garantido – e lançá-lo rumo às incertezas e aos desafios da vida civilizada.

Um belo exemplo que o cinema brasileiro nos traz sobre a paternidade e a transmissão de uma filiação está no filme Central do Brasil (1998). O filme nos conta sobre Josué, um menino que queria conhecer seu pai. Toda história se desenvolve em torno de seu regresso à cidade em que nasceu, e onde seu pai morava. O que é importante para esse personagem é o fato de sua mãe ter contado a ele sobre aquele homem que seria seu pai. Por isso Josué sempre sonhou, fantasiou com a representação de um homem que poderia ser seu pai. Ao encontrar-se com Dora (personagem vivida pela atriz Fernanda Montenegro), uma paternidade vai sendo construída para ambos. Josué ensinando a Dora a rever seus valores éticos e a redescobrir nela o feminino. O menino, ressignificando suas fantasias a respeito de seu pai e, assim, construindo sua filiação, busca na viagem de volta a sua terra natal – uma bela metáfora de retorno a sua origem, lugar onde ele nunca havia estado – o encontro com esse pai; o que não acontece.

Vale lembrar que uma psicanálise convida o analisando a contar inúmeras vezes sua história no divã e assim “viajar” de volta a uma origem sem começo, uma vez que na origem da condição humana está o interdito da Lei do pai e junto dela o vazio criador que nos exige a entrada na linguagem, fazendo do verbo a carne. Se o texto sagrado nos diz que “no princípio era o verbo”, isso se deu porque a Lei do pai introduziu a falta que provocou no homem a angústia e o desejo irrevogável de se expressar por meio do verbo.

Nessa viagem, o analisando é aquele que se perde de si mesmo, de suas certezas, de suas patologias, para se encontrar com as inúmeras possibilidades em seu ser, faltoso por excelência, e assim reconstruir sua história.

É importante ressaltar que não é por acaso que Dora, uma personagem feminina, é a interlocutora privilegiada para que Josué construa ao longo de sua viagem uma versão de pai. Quem mais pode introduzir enigmas, provocar questionamentos senão uma mulher! Por isso a psicanálise não cessa de lembrar que é a mãe, quando permite tornar-se uma mulher desejando algo mais além de seu filho, quem primeiro garante para uma criança a Lei do pai. Voltarei a esse ponto mais adiante.

Sendo assim, podemos dizer – e o Direito sabe muito bem sobre isso por conta do conceito de paternidade socioafetiva – que a paternidade pode não sustentar-se de um exame de DNA. Porque a paternidade, como nos ensinou James Joyce, é uma ficção com estatuto de legalidade. Ela é construída em torno de um vazio, por meio da trama simbólica (a voz e olhar do outro que nos acolhe), tramando, assim, o “inconsciente estruturado como linguagem” (LACAN, 1999, p.131). Sobretudo é algo que se constrói a partir da responsabilidade de alguém, seja lá quem for, em acolher, emprestar seus traços a esse novo ser que chega ao mundo.

A paternidade é uma ficção necessária porque tem o estatuto de engendrar juridicamente os seres no mundo civilizado. É a partir dessa ficção que o mundo vem se sustentando – nos dias de hoje a duras penas – por meio de suas instituições cada vez mais frágeis, descrentes em sua função de transmitir legitimidade e autoridade. A igreja é quem melhor ilustra essa ficção, que escora os homens em torno do enigma, do mistério da fé em Deus.

Desde o Direito Romano, no qual o pai, mesmo tendo em demasia o pátrio poder, porque se sustentava mais da condição de postetas do que de auctoritas[3], havia no reconhecimento de uma filiação a transmissão de uma autoridade paterna que tinha o caráter de ficção.

Ao nascer um filho, independentemente de ter sido gerado por aquele pai, este repetia publicamente o gesto de erguer a criança à comunidade e reconhecê-la como seu filho. Era um ato simbólico civil público. A auctoritas paterna estava no fato de um pai tomar para si aquele rebento como seu filho legítimo. Um ato transmitido de pai para filho que representava o compromisso e a responsabilidade em passar às futuras gerações valores e referências familiares.

A palavra “autoridade” nos vem pelo latim auctoritas, cujo verbo augere quer dizer “aquele que transmite, que cria, que aumenta e aperfeiçoa seu ato”. O sentido de auctoritas sempre permeou o Direito Romano. Desde a fundação da cidade de Roma, assim como as outras cidades que faziam parte de seu Império, o ato inaugural de fundação era marcado pela cerimônia pública de recordar os princípios da lei que sustentavam sua fundação, visando à transmissão simbólica da legalidade e da autoridade exercida pelo pater poder, tanto na vida privada quanto na vida pública.

Vale destacar que as duas grandes divindades saudadas nesses eventos, tanto no ato de filiação quanto da fundação de uma cidade romana, eram Jano, deusa do princípio que deu origem ao nome do primeiro mês do ano, e Minerva, deusa da memória. Jano tinha duas faces: uma voltada para o passado e a outra para o futuro. Essas divindades lembravam ao povo romano que o futuro não se faz sem memória e sem a transmissão da história e da autoridade sustentada na palavra de seus ancestrais.

Vamos pensar, então, a autoridade paterna no sentido da transmissão de uma referência que cria filiação, independentemente de seu contexto histórico, político ou social.

Mesmo que se saiba o quanto o pátrio poder era tirano, com poderes para decidir sobre a vida dos filhos, é importante lembrar que a severidade do pátrio poder dizia respeito à necessidade de manutenção da economia agrária, essencial para a fundação e sustentação das primeiras cidades gregas e romanas. O filho era um escravo da família e tinha a função de assegurar, por meio de seu trabalho, a estirpe que herdaria as terras.

Sabemos que a família, hoje, permite vários arranjos reconhecidos pelo Direito. O pátrio poder cedeu lugar à responsabilidade parental, sendo o direito e a proteção à criança o ponto central em torno do qual giram os mais diversos arranjos familiares. Nos dias de hoje, a paternidade socioafetiva tem relevância sobre a paternidade biológica, reconhecida como primordial nos tribunais de família.

Um pequeno fragmento da clínica do Direito, e que ocorre com frequência nos corredores das varas de família, nos conta de uma jovem que fora reconhecida como filha legítima de um homem de um de seus muitos relacionamentos fora do casamento, recebendo, portanto, o patronímico de uma família de muito prestígio.

A menina veio ocupar no casal um lugar de apaziguamento frente a uma crise familiar que começava a colocar em risco um cargo público do marido. Como a esposa era dada à caridade e se afeiçoou muito à criança, o marido tratou de reconhecer a menina como filha, sabendo que a esposa aceitaria uma aventura extraconjugal, mas não aceitaria suas manobras transgressivas na vida pública. Buscava, assim, desviar a atenção da esposa – que também queria salvar aquele casamento por interesse financeiro – além de supor que a menina encheria de alegria sua vida solitária.

Ainda na entrada da adolescência, a menina começa com pequenos furtos, dirigidos primeiro aos pais e, após, aos parentes próximos. Começou com oito anos, roubando o dinheiro da carteira do pai, e em seguida seus cartões de crédito. Recentemente, já com a maior idade, foi presa por cometer estelionato.

Quando a jovem começa a dar trabalho, já com a maior idade, o pai se dirige aos tribunais, pede o exame de investigação de paternidade, submetendo-se ao exame de DNA. Ele sempre soube que não era o pai biológico da menina. Fica provada a não paternidade biológica e os laços de filiação são cortados. A jovem perde todos os direitos de filha, inclusive de usar o nome de família.

Afinal o que essa jovem, que vivia em uma família de muito recurso financeiro conquistado por meio de posses ilegais de terras, arrancava desse pai de maneira ilícita (praticando roubos)? Não estaria ela praticando o mesmo gesto do pai: o de praticar posses ilegais de terras, fazendo-lhe um apelo ao reconhecimento de uma paternidade legítima?

O que se transmitiu nessa família foi uma não filiação, mesmo que essa criança tenha sido coberta de afetos pela mãe. O que interessava era manter essa mulher envolvida com a criança desde que ele, o pai, ficasse longe de casa e que ela não lhe atrapalhasse em seus “negócios” ilícitos.

Esse exemplo de retirar a paternidade evidencia o descuido dos tribunais em reduzir a paternidade ao exame de DNA. Uma tentativa ultrapassada de biologizar a paternidade. Não caberia ao Direito operar funcionando como lei paterna? Interditando, nesse caso, o gozo violento incestuoso de descartar um filho quando ele passa a não lhe ser mais útil? Como alguém pode reconhecer como filho legítimo uma criança e abrir mão de todo seu investimento afetivo, se é que isso ocorreu, quando esse filho passa a importunar a estabilidade e o nome familiar?

O complexo de Édipo e o sintoma pai

Antes de situar a definição de Jacques Lacan sobre o sintoma pai, cabe localizar a maneira como a função paterna pode operar no Complexo de Édipo – essa estrutura simbólica que faz nascer seres de linguagem.

O Complexo de Édipo, independentemente de seu arranjo familiar, é o lugar de onde a criança pode extrair as coordenadas significantes para montar uma versão a respeito de sua história. Ele é um operador lógico que funciona para interditar o incesto e definir lugares significantes para a criança, além de estabelecer a hierarquia – leia-se lugares de autoridade – num dado núcleo familiar; permite à criança construir sua posição sexual (menino ou menina), que será o “passaporte” para viver sua sexualidade; é o lugar onde a paternidade, encarnada em um lugar terceiro, pode barrar a relação dual, incestuosa, entre uma mãe e um filho, permitindo para uma criança o direito fundador de uma filiação; e, por fim, é a garantia de transmissão de uma filiação através das gerações.

É importante destacar que é a mãe quem primeiro reconhece e transmite a uma criança a autoridade encarnada nesse lugar terceiro. E para tal, é necessário que ela reconheça seu desejo pelo homem presente naquele pai que ela escolheu para seu filho. Sendo assim é preciso que um pai seja alguém com endereço certo.

Nada mais cruel e incestuoso para um filho do que uma mãe silenciosa, indiferente aos apelos de um filho que questiona sobre quem foi o homem que poderia ter sido seu pai. Esse é um dos grandes problemas relacionados à gravidez cada vez mais precoce. São meninas que geram filhos sem origem e sem história e que podem facilmente tornar-se abandonados do ponto de vista subjetivo. São crianças que entram com facilidade para o caminho da delinquência e das drogas.

Por isso entendo que a lei de 1992 do Código Civil que exige que todos os registros de nascimento de crianças sem pai devem ser comunicados ao Ministério Público para arguição da mãe e busca de paternidade é um bom começo para que um filho comece construir para si um pai.

A investigação de paternidade pelo DNA pode não garantir o exercício significante da função paterna, mas pode servir para uma criança de insígnia; uma marca de paternidade em instância, no horizonte de vida de uma criança, à espera de que uma filiação venha a se confirmar. Uma investigação de paternidade pode tornar-se significante na vida de um filho; pode operar gerando desejo e produzir versões de pai que servirão a um ser na construção de diversos sentidos sobre sua origem e sua existência.

O Sintoma Pai

Foram poucas as vezes em que Lacan definiu o que é um pai. Ao longo de sua obra, ele sempre teve o cuidado de separar sua função lógica de qualquer fenomenologia de pai, pouco importando quais fossem suas patologias, suas falhas ou aptidões como ser humano. Um pai não se define por sua normalidade.

Existem homens que são afetados pelo sintoma pai. Para a psicanálise, um sintoma é algo de enigmático e precisa ganhar voz para que ele expresse melhor as marcas de um desejo que estão recobertas pelo gozo de um sofrimento. Nesse sentido, o sintoma, para o campo da psicanálise, difere da perspectiva médica, que trabalha para erradicar o sintoma. A psicanálise faz falar o sintoma.

Como um homem pode ser acometido pelo sintoma pai? Poderia dizer, com Lacan, que isso só ocorre se ele se deixar contaminar pelo enigma do desejo de uma mulher. Afinal o que quer essa mulher? O que ela tem que provoca meu desejo? Esse enigma do feminino inoculado em um homem desperta-lhe o desejo de transmissão da paternidade, engendrando uma filiação. É assim que nasce um pai.

Lacan nos deixa uma definição enigmática sobre o sintoma pai no Seminário Joyce o Sinthoma: “Um pai pode ter direito ao amor, mas não ao respeito. Ele só tem direito ao respeito se for père-versement orientado”[4] (LACAN, 2007, p. 16). Notamos que o amor não indica que a função pai opere. É só nos lembrarmos do que falei sobre o pai de Joyce. Ele era um pai amável, mas frouxo em sua função de sustentar a autoridade paterna, porque o respeito só pode comparecer se houver a père (pai, em francês) version do pai sobre o enigma do desejo da mãe. É essa versão que sustenta a transmissão da lei e faz com que a criança experimente uma perda, tornando-se filho(a) do discurso. Só assim pode nascer uma criança curiosa que deseja investigar os enigmas sobre sua existência e construir sua père-version de pai. Vale lembrar que o melhor dos dons dos pais a ser transmitido aos filhos é a sua falta, que se revela através do impossível de tudo ofertar, tudo responder. Lacan prossegue conceituando que um pai “é aquele que faz de uma mulher o objeto causa de seu desejo, e que esta mulher causa lhe seja reconhecida para lhe fazer filhos e que destes, querendo ou não, ele cuide paternalmente” (COLETTE, 2007, p. 179).

Existem aqueles pais avarentos, que não suportam sustentar a paternidade e transmitir a um filho a vida. São aqueles que, por não poderem separar-se de uma posição infantil, rivalizam com os próprios filhos. Na maioria das vezes, não permitem deixar a mulher ocupar o lugar de mãe para eles: “O sintoma pai precisa conjugar o amor por uma mulher ao desejo sexuado à reprodução pela vida” (COLETTE, 2007, p. 179). Isso implica dizer que um pai é aquele que, por desejar uma determinada mulher, deseja a paternidade e a transmissão de uma filiação a sua prole e, para tal, é preciso que essa mulher possa frequentar também a função materna, para que ela nutra seu filho de cuidados e afetos, além de funcionar como garantia da autoridade simbólica da lei paterna.

Para tentar clarear essas frases provocativas de Lacan que sinalizam a importância da função pai, da função do desejo de uma mulher para que haja procriação, vou me valer de um recorte clínico. Falo a vocês de “Caveirinha”: um jovem magro e corajoso para encarar a morte. O encontro com esse pequeno fragmento clínico aconteceu num momento de supervisão de caso de uma colega psicanalista, que trabalhava em casas de abrigo de jovens em situação de risco social.

Caveirinha “filho de uma noite escura” (era assim que ele se autonomeava), também era filho do tráfico. Sua função, já aos doze anos, era ser o guardião do morro, avisando aos traficantes a chegada da polícia. Pendurado na favela, Caveirinha passava os dias a observar de binóculos não só a polícia, mas os motoristas de táxi que se enfileiravam na praça distante a muitos metros da favela. No confronto com a polícia, Caveirinha, garoto negro de olhos estranhos e, inexplicavelmente claros, erra o alvo e atira, matando, curiosamente, um motorista de táxi.

O encontro com a escuta atenta do psicanalista permitiu dar aos atos violentos de Caveirinha um valor significante, evidenciando a lógica inconsciente de seus atos delinquentes: a função que ele ocupava no tráfico e o porquê de ter assassinado, não por acaso, um motorista de táxi. Esses encontros foram lhe permitindo ressignificar um pouco de sua origem e, assim, ir construindo uma versão de pai.

É importante destacar que todo ato humano é determinado pela lógica do inconsciente estruturado como linguagem. Em sua repetição, muitas vezes de forma violenta, ele visa ao encontro com a boa palavra que permita simbolizá-lo, dando-lhe algum estancamento.

Caveirinha nunca soube que era fruto de um encontro fugaz entre sua mãe, uma menina na época com apenas quinze anos, com um motorista de táxi, um homem de olhos verdes, e que, daquela noite escura, restava-lhe apenas a lembrança da clareza desses olhos.

Esse fragmento sobre sua origem e sobre um possível pai chegou ao analista por meio de uma confissão quase que arrancada da mãe de Caveirinha devido a sua precariedade em contar algo a respeito daquele homem (pai de seu filho): “É só o que tenho a dizer: ele era um motorista de táxi. Tinha os olhos claros. Não sei o seu nome, nem me lembro de seu rosto”.

A versão do pai foi construída em torno do significante “olhos claros na noite escura”. Havia algo no olhar daquele homem que, de algum modo, causou naquela mulher algum desejo (?) e permitiu, no encontro com a escuta do analista, a construção de uma versão de pai. Esse relato fragmentado estava ali na história desse jovem como letra morta, determinando seus atos delinquentes à espera de uma escuta interessada que, ao recolhê-la no discurso, tanto da mãe quanto de seu filho, pudesse servir a Caveirinha, na construção de uma versão de pai.

O olhar claro do motorista de táxi estava ali presente: não apenas marcado no real do corpo desse jovem, mas inscrito como marcas intraduzíveis nas tramas inconscientes de seus atos delinquentes. Mesmo sem saber, Caveirinha estava à procura de um pai. Era o que o impulsionava a ser o vigilante da boca de fumo e, assim, passar horas pendurado no morro a procurar de binóculos, nos motoristas de táxi, por um pai. Era comum ao jovem, enquanto ocupava o posto de vigilante do tráfico – função que lhe dava o direito de portar uma arma – brincar de atirar nos motoristas de táxi que seu olhar alcançava através do par de binóculos.

Caveirinha, em liberdade assistida, foi trabalhar em uma oficina que confecciona lentes para óculos.

Nesse caso, investigar a paternidade por meios legais foi impossível. Não havia elementos objetivos que atestassem a existência de fato daquele motorista de táxi. A mãe não sabia com quem havia se deitado. Usuária de crack, havia se relacionado com o motorista para obter algum dinheiro a fim de poder pagar pela droga consumida.

O que restou enigmático de um pai foi a clareza do olhar de um homem estampado no corpo escuro e magro de um jovem que procurava de binóculos por um pai.

Ao que parece, trabalhar na oficina de lentes se apresentou como um caminho novo para Caveirinha construir para si um pai. Uma aposta para que ele possa também transmitir à sua linhagem familiar (futuros filhos, escolhas afetivas, apostas profissionais) não o abandono, mas elementos simbólicos que servem de suporte à sua história e a uma versão paterna possível.

Afinal temos sempre que considerar que “a criança é o pai do homem” (FREUD, 1974, p. 56). É a criança em nós, que, ao ser despertada, melhor pode criar para si, com os elementos significantes que dispõe, uma versão de pai. É por meio de sua peré-version que um filho abre as portas de casa e alcança a estrada da vida.

Notas e Referências:

[2] O casamento e o patriarcado por meio da posse dos filhos e da esposa eram a base da família no Direito Romano.

[3] Para o Direito Romano, o postetas (poder) sustentava-se através do auctoritas, que era garantido pela autoridade da palavra do pátrio poder na esfera privada ou na palavra de um magistrado na esfera pública. Para maiores esclarecimentos, ver Arendt, Hannah. O que é autoridade? Entre o passado e o futuro. Editora Perspectiva, São Paulo, 2007.

[4] Lacan brinca com a homofonia das palavras perversement (perversamente) e père (pai) versament (versão): versão do pai. Ele nos mostra que há uma perversão necessária do pai ao transmitir seus afetos e suas patologias para um filho. Só assim, com o que há de melhor e pior daquilo que herdamos de nossos pais, que é possível construirmos uma versão de pai.

ARENDT, Hannah. O que é autoridade? Entre o passado e o futuro. 6. ed. São Paulo: Perspectiva, 2007.

CENTRAL do Brasil. Direção: Walter Salles Júnior. Produção: Martire de Clemont-Tonnere e Arthur Cohn. Brasil: Le Studio Canal, 1998.

COLETTE, Soller. O que Lacan dizia sobre as mulheres. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.

FREUD, Sigmund. Três ensaios sobre a Teoria da Sexualidade. Rio de Janeiro: Imago, 1974. (Obras completas, vol. 7). Originalmente publicado em 1905.

GRUNWALD, Astried Brettas. Laços de família: critérios identificadores de filiação. Jus Navegandi, Teresina, ano 7, n. 112, 21 out. de 2003. Disponível em: . Acesso em 18 de março de 2011.

LACAN, Jacques. O Seminário, livro 23, O Sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.

_____. O Seminário, livro 5, As formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.

MANDIL, Ram. Os efeitos da letra. Lacan leitor de Joyce. Rio de Janeiro/Belo Horizonte: Contra Capa Livraria e Editora/Faculdade de Letras UFMG, 2003.

Renata Conde Vescovi é psicanalista membro da Escola Lacaniana de Psicanálise de Vitória-ES.
rcondevescovi@gmail.com.
Professora convidada da FDV (Faculdades de Direito de Vitória)

(Fonte: http://emporiododireito.com.br)

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